terça-feira, 8 de setembro de 2015

Desa-Bafo do Dragão #3 *atualizado*

Eu estava terminando de arrumar minha mochila para pegar o ônibus para a casa dos meus avós em Conselheiro Pena, chegando minhas notificações no facebook, quando vi que um amigo meu tinha me marcado numa notícia que me deixou bastante chocado "Após 15 anos, Ash mudará de dublador em Pokémon" - e eu nem pude me manifestar direito a respeito porque tinha que arrumar as malas!
O efeito não apenas me atingiu: minutos depois, diversas pessoas estavam curtindo, comentando e compartilhando a notícia. Gente que já há anos nem via Pokémon dublado mais se manifestou de forma chocada ou entristecida com a saída do papel que Fábio Lucindo vem ocupando há mais de 15 anos no Brasil - talvez a recente disponibilização dos episódios clássicos no Netflix tenha atiçado ainda mais o fator nostalgia na galera.
Mobilizações na Internet se iniciaram: fãs montaram um abaixo-assinado (que até o momento conta com quase 3300 assinantes até o momento), que tem sido compartilhado até por colegas dubladores do ator em uma demonstração pública de apoio a ele e as dubladoras Michelle Giudice (voz de Serena) e Jussara Marques (voz de Bonnie) já anunciaram que não retornam aos seus papéis sem Lucindo e fala do dublador de Ash na matéria "são 15 anos, não 15 dias" até virou hashtag e lema da campanha que visa reverter a decisão da distribuidora!
Porém, quais são as reais motivações por trás da decisão da Televix e da The Pokémon Company International? E existe alguma chance de a campanha dos fãs realmente funcionar? Estas são perguntas sobre as quais eu pretendo me debruçar neste terceiro Desa-Bafo do Dragão!

Quantidade antes de qualidade

Eu sou um grande entusiasta da dublagem brasileira, do tipo que se diverte fazendo listas e tabelas de qual dublador deu voz a cada personagem nas minhas produções favoritas e acessa o dublanet regularmente. Que fique claro, logo a princípio, que o meu conhecimento acerca dos processos e bastidores da dublagem vem de entrevistas que eu assisti ou conversas breves que tive com dubladores ou de textos que li a respeito. Antes de mais nada, é importante saber que a dublagem tem uma função, primeiramente, comercial: tornar determinada produção mais acessível a uma quantidade maior de possíveis consumidores. E por mais que criticada que seja, é inegável que a dublagem tem tido papel fundamental na popularização cada vez maior de diversos produtos, como filmes, séries e jogos, no Brasil.
Muito do crescimento da adesão à tevê a cabo nos últimos anos é atribuído a uma mudança de postura das próprias emissoras fechadas, que passaram a ofertar cada vez mais uma programação dublada em substituição à tradicional legendada, o que acabou atraindo maior interesse do grande público que não curte ler legenda. Além disso, basta ver como os cinemas brasileiros hoje ocupam a maior parte de suas salas, de forma até abusiva, com cópias dubladas dos mais populares arrasa-quarteirões, baseando-se no fato de que a versão brasileira deles é mais requisitada pelos clientes que as versões originais. Até mesmo empresas de videogame tem procurado dublar seus jogos em busca de atender as demandas locais e vender aina mais games no Brasil - um mercado em ascensão no país.

Com Pokémon não foi diferente: a distribuidora Swen Entretenimentos só conseguiu encontrar uma emissora disposta a exibir o anime na tevê aberta depois que ele já estava completamente dublado para a exibição. Nenhuma quis assumir o processo sozinha porque dublagem não é algo barato! É um trabalho que envolve dubladores, diretores, tradutores, mixadores de áudio, compositores e cantores, quando necessário, entre outros. Portanto, você acaba tendo um conflito de interesses: de um lado, as empresas e distribuidoras sempre em busca do maior lucro possível, o que frequentemente envolve estratégias para baratear os custos da dublagem, e do outro, dubladores e outros profissionais em busca de valorização e salários justos.

A coisa não fica nada bonita se você pega um anime como Pokémon, que tem um já inchado número médio de 50 episódios por temporada e isso por si só já torna o processo bastante custoso, sem contar os filmes, que desde Pokémon: Lucario e o Mistério de Mew, são de responsabilidade da mesma distribuidora do anime no Brasil. Como resultado, o anime sempre foi empurrado para estúdios mais baratos, prezando baixo custo sobre qualidade. É por isso que foi movido da competentíssima - e extinta - Master Sound para a muitíssimo criticada BKS e depois para a Parisi Vídeo e, quando esta faliu por diversas tretas, finalmente para a Centauro.
O problema é que se você busca menor preço, não dá pra exigir muito e é por isso que o anime sofreu uma queda de qualidade assustadora em sua dublagem ao longo dos quatro anos que passou na Parisi Vídeo, com roteiristas trabalhando sem script dos episódios e péssimas escalações de elenco sendo realizadas. A coisa é ainda mais assustadora se você considerar a longa estadia do anime sob a direção péssima de Gilmara Sanches e a tradução incompetente de Elaine Pagano por quase oito anos na Centauro, sem a mínima providência ser tomada a respeito (mesmo com todas as reclamações dos fãs e alguns até se voluntariando para ajudar a tornar a situação menos desastrosa, fazendo o trabalho da moças por elas)! Como resultado, o processo de dublagem ficou completamente sucateado! Ok, e aonde eu quero chegar com tudo isso? Oras, é muito simples: a mudança de voz de Ash tem propósito puramente de manter o custo da dublagem baixo.

E dá pra reverter a situação?

Olha, eu vou ser bem sincero com vocês: existe uma chance, mas ela depende totalmente da benevolência da The Pokémon Company International - que finalmente se tornou mais criteriosa com o processo de dublagem da série nos últimos anos - e da Televix (responsável pela distribuição do anime na América Latina). Isso porque, como eu falei: o interesse primário é fazer a dublagem mais barata o possível. Além disso, diferente das dublagens de filmes Disney para cinema ou dos recentes lançamentos cinematográficos de filmes de outros animes populares, como Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball Z e Naruto, no Brasil, por exemplo, Pokémon não dá nenhum retorno financeiro para as empresas responsáveis por ele: Pikachu e sua turma não vendem ingressos de cinema, nem tem distribuidoras de DVDs interessadas em lançar material da série nas lojas brasileiras tampouco emissoras de tevê aberta atrás dos direitos de exibição do anime na tevê. Tudo o que temos é o Netflix e o Cartoon Network. Entretanto, vale dizer que isso não é garantia de lucro algum na conjetura atual.
Foi-se o tempo em que emissoras exibiam animes e outros desenhos querendo lucrar com os comerciais dos anunciantes que pagavam pelos minutos preciosos dos intervalos e ousavam comprar produções estrangeiras para atrair ainda mais público. O Cartoon - assim como Disney Channel, Disney XD, Nick e outros canais infantis - lucram muito mais com o licenciamento de produtos de suas propriedades intelectuais (isto é, seus personagens próprios) do que vendendo horário comercial. É por isso que há uns anos atrás o CN só tinha Ben 10 na programação: Ben 10 vendia mochila, chinelo, boneco, relógio… e tudo isso dava lucro diretamente para a emissora sem ela precisar pagar outra empresa pelos direitos de exibir uma animação estrangeira.

É por isso que o Cartoon Network de hoje não tem interesse algum em pagar para exibir um anime como Pokémon, que não vai ajudá-la a vender basicamente nada. Verdade seja dita, as aventuras de Ash e Pikachu só têm algum espaço na tevê hoje porque é interessante para a The Pokémon Company International que o anime continue no ar para manter o interesse internacional pela marca ativo, contribuindo com as vendas de produtos como os games, as estampas ilustradas e, num menor grau, o mangá. E a TPCi praticamente dá o anime de graça - isso se ela não pagar - para que o Cartoon Network o exiba na América Latina. E não é à toa que você também pode assistir aos episódios de graça no aplicativo Pokémon TV ou no site oficial da série. O anime é só uma grande vitrine para os produtos que a The Pokémon Company International quer vender! - e como consequência, eles também têm procurado baratear ainda mais o anime dentro dos próprios EUA, não comprando os direitos de usar as BGMs originais, por exemplo, para usar música genérica feita por eles mesmos, nem mesmo para Pokémon - O Filme: Diancie e o Casulo da Destruição.
Portanto, eu volto a repetir: o foco é e continuará sendo baixo custo antes de qualidade. E isso é praticamente regra na indústria no geral! Para ilustrar a situação como ocorre no Brasil, vou mencionar alguns exemplos que não estão relacionados com Pokémon, para mostrar como a questão financeira é o fator mais decisivo numa dublagem: o seriado Lost era inicialmente dublado em São Paulo, nos competentíssimos estúdios da Álamo (também extinta hoje em dia). Porém, para a dublagem da terceira temporada, a Buena Vista - empresa ligada à Disney responsável pela distribuição da série - quis fechar um acordo com os dubladores da série para que ela tivesse direito universal sobre o uso de suas vozes na dublagem, pagando um valor fixo por isso, inferior ao valor real que teria que pagar pelo uso das vozes em multiplataformas (eles já visavam licenciamentos pra tevê e lançamentos para o home video). O elenco recusou e a Buena Vista levou o seriado para ser dublado no Rio de Janeiro, trocando todos os dubladores - e olha que alguns atores até já tinham gravado suas participações na série.

Mais ou menos nessa mesma época, tivemos outras polêmicas envolvendo trocas de dubladores clássicos: Waldyr Sant'anna, o dublador original do Homer em Os Simpsons no Brasil, e Tatá Guarnieri, que fez o Jack Bauer nas primeiras temporadas de 24 Horas, perderam seus respectivos papéis nesses seriados por entrarem na justiça contra a Fox cobrando o uso de suas vozes nos DVDs, quando haviam sido pagos apenas pelas exibições na tevê. Ou seja, as distribuidoras tradicionalmente não pensam muito nos fãs na hora de trocar um dublador, mesmo em produções em que elas lucram com vendas de DVDs, por exemplo. Mais recentemente, em 2013, os veteraníssimos da dublagem brasileira Orlando Drummond e Mário Monjardim foram removidos de seus papéis como Scooby Doo e Salsicha pela Warner Bros ao tentarem renegociar seus salários na recente animação Scooby Doo Mistérios S.A. Orlando Drummond dublava Scooby Doo há 42 anos(!!!), sendo inclusive detentor do recorde de dublador que dublava um desenho há mais tempo! Há também os casos de redublagem que algumas preferem fazer a pagar pelos direitos devidos a certos dubladores ou a pagar por um trabalho de dublagem já realizado.
Esse é o caso, por exemplo, de Os Incríveis. O DVD duplo do filme parou de ser comercializado após um tempo no país, sendo substituído por uma versão simples com uma redublagem (muito inferior) do filme, que também passou a ser veiculada na tevê. Nessa nova versão, tivemos a trágica perda de Márcio Seixas como Beto Pera, o Sr. Incrível. Citando um caso mais recente, tivemos a polêmica redublagem de Dragon Ball Z- A Batalha dos Deuses. Apesar de o filme ter sido lançado nos cinemas e disponibilizado no Netflix com uma dublagem na qual todo o elenco clássico da versão brasileira do anime retornara aos seus papéis, bancada pela Diamond Films, quando a Paris Filmes comprou os direitos para distribuir o longa-metragem no mercado de home video, ela preferiu pagar uma redublagem às pressas em outro estúdio do que pagar pelos direitos de usar a dublagem que já estava pronta. Resultado? Wendel Bezerra foi trocado em seu papel como Goku pela primeira vez na história do anime no Brasil! Houve campanha e movimentação dos bastidores para reverter a situação, mas a distribuidora bateu o pé e decidiu lançar o filme com a dublagem nova mesmo.

O lance é que: as distribuidoras não ligam para trocas de vozes, mesmo de protagonistas e fazem isso com frequência, especialmente se isso envolve custear a dublagem. Quando a 4Kids perdeu os direitos de distribuir Pokémon nos EUA e esses foram assumidos pela TPCi (Pokémon USA na época), a empresa optou por selecionar um elenco de dublagem completamente novo para a dublagem da 9ª temporada a pagar pelos contratos dos dubladores da 4Kids para que eles pudessem permanecer em seus papéis. Houve grande mobilização dos fãs norte-americanos e, infelizmente pra eles, nenhum sucesso: tiveram que se acostumar com as novas vozes pelos anos seguintes.
Dados todos esses casos, fica difícil esperar que a Televix ou a The Pokémon Company International voltem atrás em sua decisão e decidam pela manutenção de Fábio Lucindo como Ash Ketchum. É verdade que neste caso o dublador não parece estar cobrando um salário maior nem entrando em brigas judiciais contra as distribuidoras, mas sua mudança para Portugal pode sim servir de justificativa caso isso obrigue as empresas a gastarem um centavo a mais que seja para fazer a dublagem à distância funcionar - porque dá pra fazer sim, mas depende do querer da distribuidora. Além do mais, a atitude de suas colegas de trabalho de não dublarem a série sem ele pode acabar não ajudando em nada: distribuidoras não gostam de ser confrontadas e podem muito bem fazer como a Buena Vista fez com Lost e mandar o anime ser dublado no Rio de Janeiro, com um elenco 100% diferente ou simplesmente escalar novas dubladoras para Serena e Bonnie.

Além do mais, se a TPCi não pensou duas vezes antes de mudar o elenco americano todo, mudar um dublador brasileiro não parecerá problema. Até porque esse tipo de coisa acontece o tempo todo nas animações brasileiras. Desenhos como Os Padrinhos Mágicos, Phineas e Ferb O Incrível Mundo de Gumball são apenas alguns exemplos de animações que tiveram os dubladores de seus protagonistas trocados - na maioria desses casos porque os anteriores haviam ficado velhos demais para seus papéis - e, apesar da revolta inicial dos fãs, ainda permanecem no ar, fazendo sucesso como se nada tivesse acontecido.
Há, porém, alguns fatores a favor de Fábio Lucindo. O primeiro é que esta não é a primeira vez em que ele corre o risco ou perde seu personagem querido. Quando o anime estava tendo sua 4ª temporada dublada na Parisi Vídeo, houve uma preocupação de que o rapaz, que alcançava a idade adulta, estivesse com a voz grossa demais para dublar um menino de 10 anos. Foi então que Lucindo provou para eles que conseguiria ficar no papel, empregando o tom que até hoje é utilizado - e criticado por muitos por ser considerado "forçado" ou "infantil demais". Alguns anos depois, em 2006, a Europa Filmes tomou a decisão mais estúpida que poderia ter tomado: decidiu dublar Pokémon 6 - Jirachi: Realizador de Desejos no Rio de Janeiro, com um elenco completamente diferente do utilizado no anime. A informação foi vazada pelo dublador Gustavo Nader, que teria emprestado sua voz a Ash no filme.

Houve uma mobilização em massa dos fãs, inclusive do próprio Lucindo e dos demais dubladores da série animada, e a Europa Filmes mandou que as falas de Ash e cia fossem refeitas num estúdio paulista a tempo do lançamento do filme em DVD. De fato, Lucindo não revelou essa informação em entrevista agora à toa: ele já lutou por seu personagem antes e vai continuar lutando, seja aqui no Brasil, seja em Portugal. Ele ganhou outras vezes e pode ganhar mais uma vez e está contando com o apoio dos fãs e dos seus colegas dubladores para isso. Ele certamente tem esperança e parece disposto a tentar convencer seus empregadores resolutos. Se o final dessa história vai ser feliz ou não, não dá pra saber agora - e eu sinceramente não estou com as expectativas muito altas. Só sei que tudo pode dar muito certo ou muito errado. Seja como for, é recompensador ver os dubladores que tanto admiramos lutando por aqueles personagens de quem tantos gostamos - mesmo que haja um interesse financeiro nessa luta também, claro. Mas deixo aqui minha torcida para que Fábio Lucindo permaneça como o nosso Ash, afinal não vai ser o mesmo ouvir "Pikachu, eu escolho você!" com a voz de outra pessoa…
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Imagens: Google

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